Mensur: longa jornada Brasil adentro
/por Ciro I. Marcondes
Todo tipo de sociedade secreta – uma maçonaria, um clube da luta, um círculo de junkies – está ligada à partilha prazerosa do poder. Isso se dá não apenas pelo poder da exclusividade, do rito de pertencer a algo secreto, mas também pelo poder da entrega a uma obsessão. Assim, a obsessão compartilhada se torna uma justificativa plausível para o arrastar-se de uma vida miserável, vaga e sem propósito. O poder que envolve o segredo de uma obsessão é o de transformar a vida em sua antítese (não a morte; e sim espécie de anti-vida) e tudo continuar bem.
Basta lembrar a letra de “Junkhead”, do Alice in Chains: “Seems so sick to the hypocrite norm. Running their boring drills. But we are an elite race of our own. The stoners, junkies, and freaks. Are you happy? I am, man. Content and fully aware. Money, status, nothing to me. Because your life's empty and bare”.
Há aqui uma contemplação justificada pela recusa da vida, via o prazer secreto da obsessão.
Toda grande obra gira em torno de um tema infalível, e este prazer secreto e autoaniquilador da obsessão, ao menos em minha leitura, é a premissa central de Mensur, o megalítico novo romance gráfico de Rafael Coutinho, que será lançado no próximo dia 16 de Março.
Mensur levou, de maneira analogamente obsessiva, 7 anos em sua preparação. Muitas destas marcas (“cicatrizes”) de um parto laborioso e traumático se instilaram nas páginas da HQ, revelando uma obra de puro assombro destilado na cachaça diabólica da vida.
Trata-se, assim como grandes obras como Maus e Fun Home, de uma escrita traumática, mas inteiramente inventariada na ficção. Coutinho expia suas observações sobre o mundo (a obsessão, o mundo “mate” masculino, a cidade de São Paulo) na carne e coração de um personagem que, massacrado pela impossibilidade de mudar o relógio do seu funcionamento, vai tacando fogo no passado na medida em que procura retomá-lo. É uma história que, de certa forma, versa sobre como o envelhecimento pode transformar seus amigos em filhos da puta.
E isso é um ponto importante. Uma leitura apressada de Mensur pode fazer parecer que o seu tema é a honra e a redenção. O caráter maltrapilho da existência dos personagens (humanos, humanizados, mas ainda assim de uma existência maltrapilha) não permite que este ciclo redentor se concretize. O Gringo, protagonista que vaga (vagabundo), mal chegamos a conhecê-lo. Sua identidade vai assumindo formas e performances (diferentes empregos, diferentes visuais) variadas durante a história, mas, se o esprememos, temos apenas uma alma seca e danificada pelo poder secreto da obsessão.
Vale explicar: em Mensur, o Gringo é uma criatura de meia idade cujo passado como estudante de medicina em Ouro Preto revela também a origem de sua obsessão: a tradição alemã de uma violenta luta de espadas conhecida justamente como Mensur, que se enquadra como luva no sistema de estranho nepotismo que perpassa o grande conjunto de repúblicas universitárias da nossa mais famosa cidade colonial (quem já passou um tempo lá sabe como é). A sacada de Coutinho (Mensur + Ouro Preto) é uma fantasia, mas é também um muito feliz encontro ficcional. O Mensur é sombrio, violento (os golpes só podem ser dados na cara!), mas excitante. Neste sentido, lembra filmes como Crash, Shame, O império dos sentidos e outros que processam o prazer por meio de algum tipo de violência. Seria fácil procurar aplicar um tipo barato de psicanálise aqui, mas vamos guardar apenas a ideia de que o sadomasoquismo, digamos, fundacional do Mensur é uma chave para a “elaboração” que o Gringo faz de sua própria vida.
Se, do ponto de vista formal, Mensur lembra muito o cinema (chegaremos lá), na temática fica difícil, ao meu ver, fugir da semente dostoievskiana. O aspecto febril da trama, somado à tradição arcaica das espadas (vem do século XV) e ao debate moral esvaziado por pulsões animalescas não apenas faz encarnar o personagem do submundo do grande autor russo como o atualiza para uma realidade tipicamente brasileira.
Mensur é grande também porque revela um Brasil embrutecido e vicioso, mas sem exageros, sem afetação. Aos poucos, em falas, vestuários, cenários, objetos, etc., vamos reconhecendo a nossa encardida hipocrisia nacional nessa “fenomenologia do brasileiro”. O futebol, o trabalho pesado, a cultura urbana, a homofobia, todos estes temas aparecem entrelaçados como se para desatar estes nós que são os contratos em que se baseia nossa sociedade. Longa jornada Brasil adentro.
No mais, Mensur lembra O Jogador, de Dostoievsky, não apenas pela semelhança que há na crítica à hipocrisia social (e às classes sociais, como a burguesia, a aristocracia, os militares – Mensur apenas transfere este elitismo da mesquinharia aos universitários, aos trabalhadores braçais, aos agiotas), mas pelo mergulho delirante na obsessão. Em O jogador, o personagem Alexis tem, assim como o Gringo, a sua chance decrépita de redenção. E, também assim como o Gringo, sua ação final resulta em algo patético, miserável: podendo escolher entre jogar ou salvar a mulher da sua vida, Alexis decide jogar e gastar seu último tostão. A tese do autor russo aqui, sempre fatalista, é a de que cada um de nós troca a chance de batalhar por estruturar uma vida por uma obsessão. A obsessão é um último alojamento para o que resta da própria vida.
Grande paisagem
Estilisticamente, Mensur é também um caso à parte. Cinematográfica, mas sem banalidades, esta HQ costura visualmente uma espécie de noir barroco que ainda se assemelha à estética agridoce de Cachalote (mostrando o quanto do conteúdo daquele romance gráfico vem também de Coutinho, e não apenas de Galera). Coutinho abusa de sombreados complexos, ângulos arrojados, longas passagens mudas e todo tipo de empaginação. Pode-se dizer que sentimos, com o passar da leitura, os pesados anos de constituição da obra. Para além de virtuosismo gráfico, porém, ele se atém a contar uma minuciosa história paralela à de Gringo, Gordo e Cia: é a história, primeiro, dos objetos, depois das ações triviais e por fim da paisagem sonora da HQ.
De fato, olhares, roupas e instrumentos aparecem com detalhado realismo, mas o local destas coisas não é o preciosismo fotográfico. Estes objetos e ações têm ontologia. Um cara mijando. Uma lagartixa que come uma mosca. Um jantar que termina em merda. Tudo isso está profundamente ligado ao panorama psicológico da HQ. O estilo de Coutinho é sim realista, mas não frio. Além disso, ele se mostra aqui, mais do que nunca, um mestre na arte de escrever diálogos.
Mensur possui uma soundscape, coisa rara em quadrinhos. Ouvimos o barulho das espadas, das ruas, diálogos atravessados, comentários do cotidiano carregados de inferências e problematizações, jargões e gírias cheias de potência, etc. Mensur é, de fato, uma grande paisagem, em vários níveis. É um estado de espírito, por assim dizer, como Taxi driver, como Cassavetes.
No final das contas, talvez por um desdobramento emocional da própria trama e personagens impossível de ser resolvida de outra forma, Mensur recai em soluções próximas, ao mesmo tempo, tanto do documentário quanto da abstração. Se, por um lado, lembra o final de Amarelo manga (de semelhante teor febril), de Cláudio Assis, por outro traz à tona também a câmera da cena final de O eclipse, de Antonioni, quando ela revisita todos os locais pelos quais os personagens passaram, mas já esvaziados das pessoas. A abstração, para o final de uma longa narrativa, é sempre uma solução do cansaço. Sabemos que isso pode residir no cansaço final da longa produção de 7 anos de Coutinho, mas também não deixa de ser o cansaço existencial do Gringo que, pareado, ao menos nesta instância, com seu demiurgo, resolve também desistir da história e deixar sua impressão psíquica tomar conta das páginas finais. Já o aspecto documental (retratos de pessoas comuns) puxa a coisa para outro lado, como se efetivamente zerasse a história para partir para mais e melhores figuras obcecadas. Aqui, Rafael estende o tapete para outro Coutinho: o cineasta Eduardo, morto também por uma violência de natureza obsessiva. A espiral retoma sua elipse.