Alvorada dos Corações Macabros: o libelo noventista de Diego Gerlach

por Ciro I. Marcondes

No início dos anos 2000, pouco antes da era dos blogs, Diego Gerlach foi colaborador de um site de cultura underground chamado Gordurama, voltado mais para a música, que destilava saboroso veneno contra (e às vezes a favor) grupos de “rock alternativo” e adjacências que se multiplicaram em um cenário pós-90’s bastante independente.

Comentando bandas de rock gaúcho pós-Cascavelletes, passando por um rock que se reconstruía em Brasília, até estilos diversos vindos de vários estados do Nordeste (além de vasto material internacional), o Gordurama tinha personalidade arisca, era fanfarrão e não se dobrava, digamos, às convenções morais atuais, considerado o estado de selvageria da internet da época. Outros tempos.

O banner sui generis do gordurama

Gerlach era estiloso e depravado como crítico, e isso seria apenas uma amostra de seu enorme conhecimento sobre cultura musical, incluindo aí todos os gêneros do rock e suas prateleiras mais obscuras, demonstrando compreender como cada novo movimento que surgia era desdobramento de operações na história, que seguia se escrevendo em sua frente.

Eu mesmo escrevia para um site semelhante, chamado Alucináticos (“rock sem um puto de decência”), que durou pouco menos de três anos, mas alimentou em alguns jovens escribas o senso de urgência para documentar não somente discos e shows que emergiam num movimento subterrâneo, mas também compreender a passagem que estávamos sofrendo ao sair dos desiludidos anos 1990 para adentrar na sombria era da internet. O blog Raio Laser foi um descendente direto do Alucináticos.

Terá Gerlach feito um bom negócio ao migrar a crítica musical para os quadrinhos? Logicamente é uma pergunta estúpida, mas não deixaria de ser curioso ver para onde a sua pena zombeteira apontaria nos dias de hoje. De alguma forma, ele responde alguns destes questionamentos em seu último romance gráfico Alvorada dos Corações Macabros, publicado pela Pé de Cabra, que é de fato o assunto deste texto.

grunge, fuleirage e até melancolia

Em forma, pronto para tudo, ele revisita uma época imediatamente anterior ao Gordurama, provavelmente de sua própria juventude, para fazer um relato extremamente ambíguo da “angústia juvenil” dos anos 1990 e entregar o que possivelmente é seu trabalho mais melancólico. Nesta ambiguidade encontramos uma história em quadrinhos nostálgica, porém ao mesmo tempo investida da tradicional mistura de cinismo e non-sense de Gerlach.

No entanto, de alguma forma extraordinária, o cinismo e sarcasmo típicos aparecem mais tímidos e envergonhados aqui, como se o próprio autor acenasse para uma autoidentificação que despertasse em si mesmo algum sentimento sombrio. Logo, temos não apenas uma das histórias menos cínicas de Gerlach, como também uma das que mais tem coração e afetos estranhos aos quadrinhos dele em todos os tempos.

a extraordinária primeira página do gibi

Elogio do fracasso

Basicamente a história de Alvorada dos Corações Macabros nos leva, numa primeira parte, aos anos 1990 e aos problemas de um garoto que, tipicamente, derrama suas frustrações juvenis no consumo de bandas de rock da época, focando especialmente na virulência do Nirvana. Como sempre, Gerlach recheia as ilustrações, personagens coadjuvantes e citações verbais com referências bastante detalhadas do momento, fazendo desta parte uma espécie de libelo noventista, porém sem deixar de ser engraçado, de expor o ridículo daqueles tempos, de olhar para si mesmo e deixar vazar algo de constrangedor sobre aqueles anos que, podemos dizer, aparentam inocentes se comparados aos dias de hoje.

O suicídio de Kurt Cobain vai obsedar esse personagem, que vai se envolver, no presente, em uma conspiração que envolve Dave Grohl, alienígenas e outros seres ainda mais obscuros. A utilização do líder do Foo Fighters como uma espécie de vetor para as mais insanas interpretações sobre a morte de Cobain pode parecer inapropriada ou simplesmente um esculacho gratuito da imagem de Grohl, mas ao mesmo tempo é a partir disso que se potencializa a história toda. Gerlach utiliza esses elementos da cultura pop como figurações que permitem os rearranjos mais histéricos, fazendo comentários que não estão visíveis na superfície das coisas.

it's better to burn out than to fade away

Não consigo pensar em ninguém melhor para escrever o futuro de personagens como Daria, Beavis e Butthead, e o próprio Cobain. Gerlach usa aqui o seu velho subterfúgio de se apropriar dos personagens “fazendo eles serem eles mesmos, sem sê-los.” Engenhosidade pura. Cobain se revela verdadeiro Virgílio acompanhando Dante nos infernos, ao preservar a brutal autenticidade de não se render à figura em que queriam transformá-lo, mesmo depois de morto (sem querer, obviamente, romantizar sua morte).

Porém Gerlach não se limita a fazer uma lição de anatomia dos anos 1990. Viradas abstrusas vão mergulhando a história cada vez mais num mundo meio History Channel, meio Qanonismo – o que remete logicamente ao trumpismo e à dissociação cognitiva coletiva que se tornou nossa realidade.

cacofonia gerlachiana

Portanto, se o autor olha com desconfiança para a maneira sensível e paternalista com que observamos os anos 1990, sua mirada sobre o mundo atual, de Joe Rogan, mass shootings e swarmings, é, por sua vez, acelerada e alucinada. O contraste entre as duas épocas vai ficando visível e a sensação de constrangimento dos 1990’s é substituída pela sensação de impotência e loucura dos 2020’s.

Por fim, eu não poderia deixar de mencionar a audácia narrativa de Gerlach, que vai misturar registros de todos os cantos da cultura da época (áudios vazados de Arquivo X, letras de música, o diário do protagonista) para ir costurando, por meio dessas indicações indiretas, os detalhes do mundo estranho no qual estamos prestes a mergulhar – e que é, ironicamente, o nosso próprio mundo, afinal de contas. Há páginas com tanta cacofonia “sonora” e imagética, que parece que tem um motor ou um tambor rufando dentro da gente, coisa de mestre.

Tivemos a sorte de Gerlach ter largado a crítica musical (hoje ele seria um velho fazendo podcast sobre quadrinhos) para nos oferecer obras como esta, dissonantes, inflexivas e também profundas. Me pergunto se o autor, consagrado na cena de HQs nacional, mas ainda sofrendo com as intempéries de ser underground true, concorda com o conselho que Kurt Cobain dá ao menino de Alvorada dos Corações Macabros: “Sucesso é a pior coisa que pode acontecer a alguém.” O que faz desse gibi, de qualquer forma, um elogio do fracasso.